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Feira de Usados: sobre a História ou sobre a história de Machine Utopia

O Conceito e sua Autoridade Sistemática

crítico sob rasura: Caio Eduardo Gabriel

“Existe maior dificuldade em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas.” Assim começa Derrida o seu A Estrutura, o Signo e o Jogo nas Ciências Humanas. Todo o resto, tudo o que não seja essa intuição, pautada na suspensão total da metafísica, é vítima de alguma ideia de absoluto. Aqui, nem alhures, o leitor terá acesso à coisa, à coisa em-si, à coisa em-si-para-si. Nem terá acesso a um mínimo que seja de Utopia Machine Art Ensemble #0.

Em publicação de 25 de setembro de 2021, na Revista Artecapital, Victor Pinto da Fonseca se pergunta sobre fugas de um Sistema (assim, com caixa alta grafado) que, segundo o autor, tem conduzido - eu penso em inter-ditado - a arte portuguesa desde os anos 80. Tal sistema pertenceria a uma velha ordem, que teria colhido o seu sucesso da falsa sensação de segurança que produz. Essa segurança, por sua vez, se assentaria sobre um ideal, advindo de “reflexos ideológicos” dos anos 80: a arte orientada para ações conceituais. Destacadas as reflexões menos pautadas em historiografias, relevamos dois pontos da geografia desenhada, as que giram em torno do ideal e do conceitual. Trataremos, cuidaremos, com olhos saudáveis, o texto a partir desses dois termos, buscando pisar sobre as superfícies textuais que o autor compõe.

Quando são valorizadas a “verdadeira liberdade dos assuntos artísticos", a crítica “educada para ser passiva” é entendida como resultado de um “controle de certo modo paternalista” que “controla o tempo para legitimar sua obra.” Destacamos todos esses pontos por encontrarmos coerência desde aqueles termos ideal e conceitual até o modo como surgem as críticas expostas ao paternalismo e sua relação com o controle do tempo. Victor enxerga um traçado entre a história do conceito e do sistema e seus mecanismos criadores de poder, expresso pela ideia de pai e de tempo, além de toda a relação de tal constructo com o ideal, com a história da metafísica.

O sistema é um dos nomes, ou resultados, da estrutura, um jogo impensável sem a presença. Define-se esta como um centro caracterizado por, a um passo, ser Necessária à estrutura e ausente dela. Sendo assim, podemos verificar uma constante troca metafórica e metonímica de tais centros; uma imagem recorrente para estes é a do pai, quem diz, delimita, ou inter-dita, o significado das coisas.

Será, portanto, um conceito ou a estranheza do conceito a arte que busque obliterar essa centralidade?

Utopia Machine não tem pai. Se Lacan dispõe o espelho sobre o analisando, aqui há um único espelho, que se produz por coincidência de produtos em um espaço, mas o espelho se estatela em meio à galeria e se multiplica em migalhas poli-refletoras de singularidades múltiplas. Mas pode restar a pergunta: e qual o processo que leva a tal resultado? Portanto: intuímos que seja a exclusão dessa pergunta, por impertinência de suas categorias, a resposta mesma a ela. Explico. O resultado, e todas as suas ideias circundantes ou subordinadas, assim como a pergunta pela origem, deve ser eliminado. A persistência processual parece o caminho de aposta para compor a exposição.

Como lembramos, de uma estrutura, houve sempre o interesse pelo encontro de um centro. É, entretanto, de puras diferenças que ela se forma. Num sistema que oblitera subjetividades - e o que cria o sentido é aquilo em que um valor difere do outro - não há espaço para a estrutura subordinativa.

Esse sistema fluido descreve o modo de funcionamento da língua, para nos fiarmos a algum dado sensível de nosso uso cotidiano (possivelmente até inconsciente.) As distâncias puras, e tão somente, são as criadoras da linguagem, desde a observação de Ferdinand du Saussure, “na língua, só há diferenças.” Longe de qualquer essência, mesmo que ela se encarregue, por motivo da típica insegurança filosófica, de criar mecanismos geradores de realidade, a ilusão do estável, a suposição do organismo gerado pelo pai.

 

Fantasma Crítico

Fui chamado a participar, sim, de parte do processo artístico. Isso exatamente porque a proposta é que seja sempre processo, jamais produto, jamais possa estar no horizonte ôntico das finalidades - ou finalizações. Isso indica o #0, que compõe o nome dado a determinado encadeamento processual que se faz ver hoje na Galeria Eritage; isso indica o novelo vermelho ao chão, finalizando as pautas de corda vermelha que recobrem uma das paredes expostas, e como que corrompe o fim por meio do indício do resto. Isto que vemos espalhado pela galeria: um conjunto de restos de processo, como se o mecanismo, a estrutura, ou sistema, tivessem abandonado um espaço compondo o que será História, pelas ruínas que revela.

Por tudo isso, também o digo, este texto jamais pode ser um texto crítico. Será sempre um objeto literário que sobrou ao lado daquela civilização arruinada, ou cidade submersa à espera de escafandristas que nada mais poderão obter do que novos estímulos a ainda outras criações; jamais teremos explicações, ou necessidade de complementos, que venham revelar um sentido profundo, obscuro.

Cada etapa do sistema produtivo é o inalcançável que deixa por trás de si um rastro, que não é a coisa em si, nem deixa de sê-la, é alguma coisa que desliza entre o mito e o real como uma segunda oposição, a das categorias da exclusão (nem-nem) e da adição (e-e). Produz-se música, por trás dela rasteja uma pintura, a qual por sua vez devém abandonada em troca de novos sons, num processo em que máquinas se engatam em novas máquinas, sons se desterritorializam em traços e tons coloridos, e se reterritorializam em harmonias e tons audíveis. Quem decide se a verdade da obra está nas composições que somente restam a quem se deixou por elas marcar no dia da abertura da exposição; ou se o alvo do real se encontra no último papel pintado e depositado dentro de uma bolsa suspensa em uma das paredes da galeria? Isso traz nova pergunta, quem assina os trabalhos, se alguns artistas que passaram, deixaram suas pegadas sobre eles, simplesmente passaram e os largaram, como a água que abandona o leite a condensar num galão industrial?

Esses trabalhos, se os encaramos de frente, não têm margens; se nos aproximamos de alguns, vemos exatamente pegadas, não sabemos de quais sapatos - ou seriam tênis, pés descalços? Adquirem sem medo algumas das faces do caos que intuímos quando abandonamos toda metafísica e olhamos os fenómenos sem guarda-chuvas, sem a necessidade da cabana de Descartes em Meditações Metafísicas, largando-nos como as folhas de mais sorte, que não caem em velhos tanques como sapos de haicais, mas se soltam aos sobressaltos de largos rios, e daí aos refluxos do mar.

Isto nunca poderá ser um texto crítico, mas sempre um texto escrito ao lado, mais um resto acumulado que compõe o que chamamos História. Mais um objeto na feira de antigos objetos usados, entre relógios e relíquias.

 

O Rés, o Raso, o Resto

Nossos gestos são o que resta das nossas obras - ou podemos dizer o contrário? O que se aprofunda, o que se adensa, e resta ao que se esvai, é o que produz História, sem ser, sem centro. Precisamos de epoqué para intuir o mundo da vida. Nem matemáticas, nem geometrias, nem filosofias resistem a uma análise mais rigorosa, mais atenta, eternamente atenta. Após esta, o que resta? Criações e restos, criações e restos, infinitamente criações e restos sobrepostos.

Assim, se compôs a Máquina Utópica - ela mesma, um próprio resto, desde o nome, o que sobrou de uma utopia, do impossível imaginado. Cada tela surge de situações diversas, entre sons e camadas de tinta: as telas acumulam sucessivas pinceladas, sumindo algumas cores, e restando em texturas, enrijecendo a história que contam, desde finos tecidos até se tornarem matéria densa e dura. Passos e poeira compõem a proposta. Uma partitura de linhas pregadas na parede e sacos pintados foi tocada em algum momento, agora balançam à brisa do tempo como roupas em um varal de alguma cidade abandonada. Tintas sobre papeis se acumulam em uma sacola, como alguma coisa deixada por quem se preparava para viajar, mas as esqueceu ao partir, e não retornará de viagem.

Este texto, espero, algum dia, embrulhará um peixe, impresso em algum papel barato.

 

crítico sob rasura: Caio Eduardo Gabriel